A
ELITE DO LAZER: A PRESENÇA DO CLUBE CEARENSE NA CIDADE DE FORTALEZA DO SÉCULO
XIX (1867-1877)
Thiago Eloi Bahia
RESUMO: O Clube
Cearense, considerado o primeiro clube social de Fortaleza, foi criado em 1867
com o objetivo de congregar as pessoas ditas da “elite” da capital cearense
daquele período. Com seus bailes luxuosos, mobílias oriundas da Europa e pompa
de seus sócios, o Clube Cearense logo teve lugar marcado nas páginas dos
principais jornais de Fortaleza da segunda metade do século XIX. Foi, também, a
primeira agremiação a ter sede própria, prédio majestoso inaugurado em
fevereiro de 1872, na atual Rua Dr. João Moreira 143, na frente do Passeio
Público, onde hoje funciona o Museu da Indústria. Por não ter deixado suas atas
de reuniões, documentos oficiais e mais informações primarias de seu
funcionamento para o efetivo estudo e análise de historiadores e demais
interessados, toda a história do Clube Cearense está marcada na Cultura Escrita
de Fortaleza do século XIX e início do XX, sobretudo, em jornais e livros de
memorialistas. Através do estudo das representações do clube nesta Cultura
Escrita é possível problematizar diversas situações, por exemplo: quem eram os
sócios do Clube Cearense? Qual a representação que prevalecia nos jornais? Qual
o lugar do Clube Cearense nas sociabilidades da época? Que influência e poder o
clube exercia na cidade em seus diversos aspectos, como político e econômico?
Todo clube é uma forma de distinção social, e o estudo da dinâmica do Clube
Cearense nos apresenta claramente esta assertiva, além de nos ajudar a
compreender o cenário político, social e econômico da Fortaleza do século XIX,
sobretudo, o período de expansão do capital estrangeiro.
Palavras-chave: Clube Cearense, Fortaleza, Século XIX.
INTRODUÇÃO
Fortaleza passou por um período de
instabilidade na sua economia durante praticamente todo o século XIX. O Ceará,
separado da administração de Pernambuco – fato ocorrido em 1799 - e naquele
momento podendo comercializar seus produtos diretamente com a Metrópole, passou
por um surto econômico influenciado pela cotonicultura. Mas, frequentes secas e
concorrência de outras Províncias muito limitaram esse crescimento; pensava-se
que com a emancipação de Pernambuco e a consolidação de Fortaleza como capital
da província, a economia da mesma iria ter um grande impulso, contudo, o que se
viu foi um Ceará ainda muito dependente economicamente do porto de Recife e com
uma economia frágil, tendo, até 1840, como maior renda, ainda, as negociações
internas oriundas da pecuária. (VIEIRA JÚNIOR, 2005)
Após a abertura dos portos às nações amigas
(1808), o Brasil passou a comercializar seus produtos com outros países e o
grande beneficiário deste fato foi a Inglaterra. Naquele período, vivia-se uma
grande expansão dos investimentos ingleses para outras localidades do planeta
com a intensão de descobrir promissores mercados consumidores dos seus
produtos. A partir de então, a Inglaterra não só exportava o seu capital para o
Brasil, mas também seus produtos e também seus homens.
A Fortaleza do século XIX estava, sobretudo,
ligada ao boom do Ciclo do Algodão, o
que contribuiu para a sua (re)formulação econômica e urbana que beneficiava
apenas aos segmentos da elite dominante fortalezense, detentores de poder na
capital. Através de relações comerciais regulares com o velho mundo, e
seduzidos por este comércio do algodão, vários ingleses, franceses, portugueses
vieram para a capital cearense e se fixaram tornando-se importantes
comerciantes na cidade, integrando-se, assim, na camada dirigente de Fortaleza
com políticos, capitalistas, barões e outros administradores.
Congregados com as camadas dominantes de
Fortaleza, os estrangeiros eram pessoas exigentes, polidas, acostumadas com os
prazeres das grandes cidades europeias. A partir de então, desejava-se espaços
para a sociabilidade dessas pessoas, mas os locais existentes com essa
finalidade eram as praças e teatros, lugares que os populares frequentavam com
mais assiduidade. Surge a partir desta ideia o primeiro clube social da cidade:
a Sociedade Clube Cearense.
O LAZER NA CIDADE: SURGE O CLUBE CEARENSE
O
clube em estudo foi instituído no dia dezenove de abril, mas seu baile
inaugural foi somente no dia sete de setembro de 1867. Seus jogos de salão,
cassinos, bailes e o luxo de seus sócios apresentavam para a capital cearense
um espaço desta forma inédito até então. Alguns dos indivíduos permanecerão à
frente da diretoria do clube durante muitos anos, sobretudo, o de Victoriano
Augusto Borges, presidente e fundador da instituição, mas também Adolpho
Herbster e Richard Hughes.
Após
quatro meses do seu advento e com poucas notícias nos periódicos cearenses, foi
decidido que o baile de inauguração da sociedade seria no dia sete de setembro
de 1867, no sobrado da dona Manuela Vieira. Logo se tornou um dos principais
locais de lazer da cidade, senão o único, na fala de um oficial da guarda
nacional (Jornal O Cearense, 19 de
setembro de 1869, p.4), mas um lazer excludente. Não era qualquer pessoa que
poderia participar de um baile do Clube Cearense. Um grande número de sócios
era formado por políticos, então, observamos que a escolha da data da
Independência do Brasil para ser a inauguração do clube não foi algo escolhido
aleatoriamente. Existe todo um significado por trás dessa data e interesse dos
mandatários da instituição para a escolha da mesma.
Apesar
das dificuldades, a sede própria foi erguida e o primeiro baile, tido como
muito elegante, na nova casa aconteceu no dia dez de fevereiro de 1872. Abaixo
temos um trecho do jornal O Cearense,
que noticiou o baile de inauguração da nova sede, e agora sede própria, do
Clube Cearense:
Baile:
No sábado (10) inaugurou-se com um esplendido baile o novo palacete destinado
as reuniões da sociedade Club Cearense. O edifício acabado com muito gosto, e
adornado com muita riqueza é um dos mais elegantes que conta a capital. O baile
esteve extraordinariamente concorrido, contando-se para mais de cem senhoras,
que trajavam ricos e elegantes toiletts. Felicitamos a diretoria da sociedade,
a cujos esforços se deve o brilhantismo da festa. (Jornal O Cearense, 15 de fev. 1872, p. 3)
Ao
analisar essa notícia, percebemos tom de entusiasmo com a inauguração da sede
própria do clube social e também que o prédio chamou a atenção da cidade. O
jornal até afirma que o edifício “adornado
com muita riqueza é um dos mais elegantes que conta a capital”. Não podia ser
diferente, o prédio era o símbolo maior dos integrantes do clube que se diziam
da elite de Fortaleza, mas também servia como identificação do grupo. O valor a
ser dado a esse edifício estava intimamente ligado à capacidade de
identificação do grupo ao qual pertencia e a representação do Clube Cearense
construída durante todos esses anos. Ora, quem lia jornal no século XIX?
Sobretudo a camada dirigente. O povo não era alfabetizado. Chartier diz que é
do “crédito concedido (ou recusado) às
representações que propõem de si mesmos que depende a autoridade de um poder ou
o poderio de um grupo” (2002, p. 95).
Aliás,
como diz Hall (2016, p.31), a representação de um grupo não é algo dado, mas
construído. E podemos dizer que:
Representação
é uma parte essencial do processo
pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de
uma cultura. Representar envolve o
uso da linguagem, de signos e imagens que significam ou representam objetos.
Entretanto, esse é um processo longe de ser simples e direto [...].
O
que Stuart Hall quer dizer é que o sentido é algo construído pela
representação. Ora, podemos, então, nos perguntar qual a representação do Clube
Cearense nos jornais de Fortaleza no século XIX? Representações positivas,
certamente. Mostram um clube luxuoso, à frente da população onde encontra-se,
um orgulho para Fortaleza, um local exemplar e digno da cidade que
“modernizava-se”. Contudo, a “representação
é a produção do sentido pela linguagem” (HALL, 2016, p.53) e esse sentido
não está no objeto, na pessoa ou no grupo. Somos nós quem construímos e fixamos
esse sentido em determinado tempo. O sentido que é dado ao grupo “é o resultado não de algo fixo na natureza,
mas de nossas convenções sociais, culturais e linguísticas, então o sentido não
pode nunca ser finalmente fixado” (HALL, 2016, p.45), pois ele pode
alterar-se. E foi isso o que aconteceu com o Clube Cearense, sobretudo após
1877.
No
período de 1877-1879, o Ceará passou por uma das piores secas de sua história e
várias pessoas saíram do interior do Estado para a capital em busca de melhores
condições de vida, mas aqui acabaram morrendo com a miséria, as doenças e a
fome.
O
jornal “O Retirante”, periódico que
se dizia órgão das vítimas da seca e
que publicava semanalmente, retrata sua crítica ao contrate vivenciado na
capital durante a estiagem em um exemplar do primeiro dia do ano de 1878:
Club
Cearense: Esta sociedade que tem a torpeza de dar bailes em uma quadra de
lágrimas e de misérias, como a que infelizmente atravessamos; que tem sócios
que, com suas famílias, dançam, comem e bebem com o maior entusiasmo às mesmas
horas em que, em diversos ângulos d´esta cidade, sucumbem à fome dezenas de
infelizes; esta sociedade, dizemos, é indigna de funcionar em uma cidade
civilizada como esta [...]. (Jornal O
Retirante, 01 de jan. 1878, p.3)
Aqui
temos uma representação diferente do clube dos outros jornais da cidade. Fica
claro aqui, para nós, que, principalmente no período da seca de 1877, os bailes
que aconteciam no prédio incomodavam uma parte da população que enxergava
nestes eventos luxuosos uma contradição muito grande com o cenário que a
capital vivia. De fato, o Clube Cearense era apenas de alguns cearenses!
Podemos
refletir dessa notícia que a memória se trata de um processo que ocorre em um
meio dinâmico. As “memórias que
escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar) e como damos
sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo.” (THOMSON, 1997,
57) e o contexto histórico vivenciado reflete nas representações dos grupos e
pessoas em determinado período. Fica claro perceber que todo o luxo do Clube
Cearense, em um dado momento, iria incomodar as pessoas que não poderiam
participar dos bailes e muito menos fazer parte daquele grupo.
Enquanto
Fortaleza vivia uma reformulação social e urbana, expansão capitalista,
desenvolvimento econômico, não existia críticas ao luxo do Clube Cearense e
suas práticas ostensivas, mas a partir de 1877, com o advento da seca, isso
muda completamente, já que não ocorre uma redução desse comportamento garrido
por parte dos seus sócios e a cidade estava repleta de retirantes pedindo
ajuda, socorro e o ato de esbanjar apresentava-se, naquele momento, como uma
afronta ao contexto que a cidade acompanhava. O Clube Cearense foi, sem
dúvidas, uma das grandes instituições de lazer de Fortaleza durante o período
em que funcionou – até 1900 - e pode ser considerada um dos símbolos da
sociedade conservadora, elegante e exigente que se construiu na cidade, graças
ao Ciclo do Algodão na segunda metade do século XIX, e que queria congregar os
seus pares para se divertirem, mesmo que fosse “indigna de funcionar em uma cidade civilizada”.
FOTO 3:
Antiga sede do Clube Cearense. Foto de 1908
Fonte:
Arquivo pessoal do autor
FONTES
Jornal O Cearense, 19 de setembro de 1869,
página 04
Jornal O Cearense, 15 de fevereiro de 1872,
página 03
Jornal O Retirante, 01 de janeiro de 1878,
página 03
REFERÊNCIAS
Thiago Eloi é historiador formado pela
Universidade Federal do Ceará, mestrando em História e Culturas pela
Universidade Estadual do Ceará e graduando em Direito pelo Centro Universitário
Christus. Bolsista de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).
VIEIRA
JÚNIOR, Antonio Otaviano. Entre o futuro e o passado: aspectos urbanos
de Fortaleza (1799- 1850). Fortaleza: Museu do Ceará, 2005.
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória:
questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias. Projeto História nº15. São Paulo:
abr/1997. p.51-71
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de
Janeiro: PUC-Rio: Apicuri, 2016.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre
incertezas e inquietude. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand. Lisboa: Difel, 1990.

Belo trabalho, com texto embasado teoricamente e escrita envolvente.
ResponderExcluirNão conhecia o Clube Cearense e muito menos o contexto que permitiu sua existência. O trabalho apresentado foi suficiente para sanar todas minhas dúvidas em relação a fundação e propósito do clube.
Aline de Jesus Nascimento / UNESP-Assis
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirMuito obrigado pelos elogios, Aline.
ExcluirOlá, Thiago!
ResponderExcluirAgradeço sua participação no simpósio. Seu trabalho é muito interessante. O lazer é uma temática que deveria ser mais debatida em relação à modernização das cidades. Gostaria de fazer algumas perguntas:
1- O clube tem seu fechamento ligado às críticas que sofria durante o período de maior crise econômica e social agravado pelas secas, ou isso é apenas um dos fatores?
2- O resumo é um espaço muito curto para os resultados de uma pesquisa de mestrado, no entanto, gostaria de saber se você dedicou-se a analisar o conceito de lazer e sua relação com a ocupação desigual do espaço urbano.
3 - Você menciona os outros espaços de lazer da cidade. Apesar do Clube ser uma associação excludente, em que medida esses outros espaços como praças e teatros também são frequentados de forma desigual?
Olá, Clara. Bem, vamos lá.
ResponderExcluir1-O clube era formado por muitos comerciantes. Eu percebi que desde a grande seca de 1877 o clube começou a passar por dificuldades financeiras, provavelmente por conta das perdas com a seca. Outro provável motivo foi a rivalidade que a partir de 1884 ela teve com um clube que surgiu para concorrer com o Clube Cearense esse espaço de lazer: o Clube Iracema. Aliás, após o clube encerrar suas atividades, muitos foram se associar ao Clube Iracema - o qual tinha um valor bem menor do que o cearense para se associar.
2- eu analiso sim o conceito de lazer na dissertação. Trabalho com o lazer em Norbert Elias.
3- O lazer na cidade de Fortaleza naquele período era, sobretudo, um lazer excludente. O Clube Cearense só apresentou ainda mais essa exclusão ao proibir a associação de pessoas que não fossem "dignas" de adentrar ao "castelo da elite" montado no centro da cidade. Os outros espaços, como teatros, eram também excludentes no sentido de que não foram feitos para todos os públicos da cidade, mas com certeza aqueles que possuíam um capital cultural elevado.
Bem, espero ter ajudado nas questões. Qualquer coisa estou disponível para tirar outras dúvidas. Obrigado.