A IDENTIDADE JUDAICA NO SÉCULO I E O DISCURSO APOLOGÉTICO DO EVANGELHO DE MATEUS

A identidade judaica no século I e o discurso apologético do Evangelho de Mateus

Lucas de Mattos Moura Fernandes

Resumo: Este breve trabalho tem por objetivo expor o contexto histórico da comunidade de fé que se formou em torno da tradição narrativa do Evangelho de Mateus, sendo alvo de nosso interesse a forma como o autor deste texto religioso apresenta a relação entre os primeiros cristãos e representantes do judaísmo formativo. Demonstramos  como o Evangelho de Mateus possui um caráter eminentemente apologético, onde a conjuntura de reconstrução da identidade judaica após a destruição de Jerusalém pelo Império Romano (70 dC.), gera um ambiente de disputas simbólico-teológicas e a comunidade mateana se apropria criativa e polemicamente destes elementos da tradição judaica presentes ao longo da história e dos ensinamentos de Jesus.
Palavras-chave: Judaísmo - Cristianismo -  Evangelho de Mateus

Durante muitos séculos, o Evangelho de Mateus foi considerado o primeiro dentre os Evangelhos. Sob influência da teologia agostiniana este livro do Novo Testamento alcançou determinado status devido a sua popularidade, especialmente entre os pais da Igreja, que citavam-no constantemente em seus escritos, aliado ao fato de que o autor dá grande relevância aos ensinos de Jesus, tornando este Evangelho um veículo importante para a instrução dos recém convertidos (MARGUERAT: 2008,p.63). A tradição uniforme sobre este evangelho atesta que foi escrito por Levi, também chamado Mateus, coletor de impostos que se torna discípulo de Jesus e um dos Doze (Mc 2:14; Lc 5. 27,29; Mt 9.9; 10.3*[1]), tendo, segundo Eusébio de Cesaréia , redigido esta obra originalmente em hebraico ou aramaico(CESAREIA: 1999,p.119), mas este testemunho dado por Papias não encontra similar prova que o confirme.
Marguerat, estudioso do tema, expõe a possibilidade de que o autor deste Evangelho seja um judeu do fim do século primeiro, a partir de evidências como o uso do texto do Evangelho de Marcos para confecção da obra mateana; representação de um judaísmo referenciado pela identidade farisaica, algo estabelecido após o ano 70; repetição da expressão “suas sinagogas” para falar dos judeus, indício de uma identidade separada entre a comunidade mateana e sinagogal (4.24; 9.35; 10.17; 12.9;13.54; 23.34), citação de palavras e costumes judaicos sem explicação de seus significados, além da alusão a perseguições, que na cronologia assumida por Marguerat, reflete uma situação característica dos finais do primeiro século (10.16-42) (MARGUERAT: 2008,p. 69).
A possibilidade de que o Evangelho de Mateus tenha sido originalmente escrito em aramaico, e principalmente as características que a comunidade e os símbolos identitários judaicos são tratados no texto desta escritura, resultam  na defesa que alguns autores fazem de que este Evangelho teria sido escrito à comunidade judaica da palestina, da qual teria feito parte não apenas o autor, mas também toda a primeira geração de cristãos. F. Davidson, comentando sobre evidências internas relacionadas a esta questão aponta “as referências a Jerusalém como a ‘Cidade Santa’, a menção do sinédrio e dos concílios da sinagoga, o notável respeito dado à lei mosaica, a linguagem rabínica de Mt 16.19 e Mt 18.18 e, principalmente, o uso das profecias do Velho Testamento” (DAVIDSON: 1995,1615).
Estamos aqui de acordo com a delimitação proposta por Elenice Oliveira para construir seu (agora nosso) objeto de estudo que é a comunidade mateana. Esta seria formada por cristãos de origem judaica que se retiraram das cercanias de Jerusalém para escapar da investida romana do ano 70 d.C., quando o Império sufocou o movimento revolucionário judaico, tomou a cidade santa e destruiu o Templo (OLIVEIRA : 2015, p.372). Estes judeus cristãos se refugiaram em cidades na Síria e na Fenícia, especialmente Antioquia e precisaram se reorganizar, lidar com novos componentes que estavam sendo incluídos no grupo após esta nova conjuntura e resistir aos embates que seriam travados com os círculos de mestres fariseus, que fizeram o mesmo caminho de retirada e se dedicavam a combater de dentro para fora do judaísmo aqueles que não correspondessem a sua concepção religiosa.
A leitura do Evangelho de Mateus é permeada pela presença de “citações de cumprimento”, demonstrando o enraizamento veterotestamentário da teologia do autor desta obra. O Jesus anunciado pelos participantes da comunidade de fé que segue a teologia de Mateus está diretamente fundamentado em suas prerrogativas messiânicas anunciadas por meio da Torá e dos Profetas, e este mesmo daria testemunho da Lei que o precede. Contudo, talvez possamos afirmar que a teologia do Evangelho de Mateus se apropria criativa e polemicamente destes elementos da tradição judaica presentes ao longo da história e dos ensinamentos de Jesus.
Marguerat cita uma corrente teológica de estudos que vê no escritor do Evangelho Mateus um grande polemista que se contrapõe diretamente aos principais representantes da religião judaica, devido ao espaço reservado em sua escrita para relatar as numerosas polêmicas entre Jesus e os fariseus (9.9-17; 9.34; 12.1-14;12.22-32; 12.38-42; 15.1-20; 16.1-4;19.1-9; 21.23-27;22.15-22; 22.23-33;22.41-45), a mobilização ou alusão polêmica de certas passagens do Antigo Testamento (13.14-15; 15.8-9; 23.38; 27.9-10), as repetitivas investidas contra os ouvintes de Mt 23 além de certas tradições próprias deste Evangelho no relato da paixão de Cristo que reforçariam a narrativa da culpabilidade de Israel na morte de Jesus (27.3-10; 27.24-24; 28.11-15) (MARGUERAT: 2008. p.68).
O teólogo James Bartley, responsável pela redação do comentário ao Evangelho de Mateus participante do “Comentário Bíblico Mundo Hispano”, seguindo as características contextuais deste livro neotestamentário que temos exposto aqui, defende que o autor deste Evangelho estava integrado em uma comunidade cristã que enfrentava algumas necessidades comuns em muitas outras gerações descendentes de cristianismo, buscando proporcionar a esta comunidade uma ferramenta eficaz para um serviço pastoral que se propunha a defender suas crenças diante do ataque dos líderes do judaísmo oficial, instruir os novos convertidos vindos do paganismo e ajudar os membros da comunidade a viver de acordo com o exemplo, obras e ensinamentos de seu mestre e senhor (BARTLEY: 1993, p.36).
Desta forma, o propósito do evangelho de Mateus estaria diretamente relacionado á conjuntura em que estava inserida a comunidade mateana no primeiro século, contendo em si os interesses (1) apologético, especialmente diante da ofensiva apresentada pelo judaísmo oficial, (2) doutrinário-litúrgico, enquanto obra que observa manifestações de adoração e liturgia praticadas pelos discípulos e pelo próprio Cristo (único evangelho que cita os discípulos cantando à mesa da Ceia, por exemplo, em Mt 26.30) e (3) eclesiástico. Entretanto é notável que seu aspecto mais chamativo é o apologético.
Concordamos com Saldarini que, ao analisar a estrutura apologética de Mateus em relação ao judaísmo formativo de seu tempo, seguindo as matrizes de pensamento sociológicas propostas por Peter Berger e Thomas Luckman, propõe que quando um grupo grande enfrenta uma seita, reage reorganizando suas legitimações para reafirmar seu universo simbólico e suas instituições. Consecutivamente também, o grupo estabelecido pode combater seu opositor apologeticamente, produzindo vocabulário explicativo sobre o outro pela linguagem de seu próprio universo simbólico, narrando a história e classificando a identidade do rival de acordo com sua própria percepção de certo versus errado (SALDARINI: 2000, p. 84).
Desta forma, segundo Saldarini

Mateus procura fragmentar o universo simbólico de seus adversários e as teorias que legitimam suas diversas instituições. Não nega todo o universo e sistema simbólico judaico, como muitos afirmam, mas propõe, de dentro, um entendimento alternativo dele e sua realização na vida. [...] Finalmente, assim como o organismo maior justifica a dissidência do organismo menor, atribuindo-lhe erro e má fé, Mateus deslegitima os líderes judaicos e a interpretação que fazem das instituições e do universo simbólico judaicos, acusando-lhes de má fé, entendimento errado da Escritura e da vontade divina e mau procedimento(SALDARINI:2000, p. 85).

            É evidente que a comunidade mateana se encontra em uma zona de confronto, entre a formação da religião cristã como um sistema de pensamento que se fundamenta na (re)interpretação tradição judaica e a própria disputa entre segmentos judaicos, dos quais até então a mesma comunidade fazia parte, pela reconstrução da identidade judaica num período de crise, marcada pelo ocaso do Templo de Jerusalém. Devemos notar no contexto histórico em que Mateus escreve seu evangelho de resistência à pressão sofrida por seus seguidores por parte das autoridades judaicas, o chamado concílio ou academia de Jâmnia se estabeleceu como substitutivo a instituição perdida do Templo.
            Jâmnia concentrou uma rede de relações entre autoridades judaicas sobreviventes aos fatos ocorridos no ano 70 d.C. e inaugurou o período rabínico o judaísmo, onde a autoridade civil e religiosa máxima estaria nas mãos daqueles habilitados a interpretar as Escrituras. Estas autoridades rabínicas redesenharam os limites e símbolos da instituição religiosa judaica em torno dos pressupostos anteriormente defendidos pelos grupos farisaicos alinhados à escola do rabino Hilel, tomando decisões como a organização de um calendário litúrgico que permanecesse unificado mesmo em meio a diáspora, fechamento do cânon judaico, acrescentar posturas e costumes à lei religiosa judaica, estipulando práticas que culto que substituem aquelas que outrora eram limitadas ao espaço do Templo, práticas estas que futuramente se tornariam símbolo da vida cotidiana judaica (BRENNER: 2013,p.55).
            Como sabemos, a formação de uma identidade se sustenta a partir da definição daquilo que seus possuidores não são. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que os rabinos que se correspondiam por meio de Jâmnia e se reuniam em cidades da Galileia no fim do primeiro século redefiniam a identidade judaica, eles também definiam quem não faria parte dela, que seriam visto como um outro, o não-judeu.
Com a progressiva dissolução dos grupos saduceus, que fundamentavam sua legitimidade no sistema religioso do Templo que fora destruído, e com o fato de que os Essênios eram um grupo externo em relação às principais instituições judaicas e provavelmente se extinguiram com a derrocada em Bar Kochba (135 d.C.), a disputa pela identidade e reinterpretação dos símbolos judaicos se deu entre os últimos fariseus e a seita judaica dos nazarenos, a que chamamos de primeiros cristãos. Por conta disto,  o grupo de Mateus foi considerado por eles como dissidentes e heréticos, foram expulsos das assembleias judaicas e até considerados como inimigos.
A colisão entre as duas comunidades de fé teria aumentado progressivamente por disposições de ambos os lados, sinalizada pela reunião em que a comunidade sinagogal se reunia proferindo liturgicamente dezoito bênçãos para os judeus e uma maldição para os cristãos, considerados inimigos do povo de Javé. “O grupo de Mateus tenta sobreviver, influenciar e se manter no poder, apesar da resistência por parte dos fariseus, que também procuram a mesma coisa”  (OLIVEIRA: 2015. p.375).
Pelo conflito ocasionado com os representantes do judaísmo oficial, Mateus busca em seu evangelho divulgar o conteúdo programático de sua percepção teológica baseado e exposto por meio dos ensinos de Jesus, nos quais os ritos judaicos regulamentados pelos fariseus não possuiriam o menor sentido, sendo ultrapassados em relação a mensagem de libertação, de inclusão do necessitado e do exercício da simplicidade na fé. Mateus expõe a percepção de que só por meio da mensagem de Jesus o homem teria acesso a Deus, independente do sistema sacerdotal-sacrificial outrora estabelecido no Templo. Muito mais do que elaborar e compreender uma reformulação do judaísmo, seria necessário uma nova vida.

Referências:

O autor é Mestrando em História pelo programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua pesquisa de mestrado é vinculada ao Núcleo interdisciplinar de Estudos Árabes e Judaicos e financiada pelo CNPq. O autor desenvolve trabalhos sobre a identidade judaica em diferentes contextos históricos.  
E-mail: lucasfernandes@ufrj.br

BARTLEY, James. Mateo. Comentário Biblico Mundo Hispano. Tomo 14.El Paso: Editorial Mundo Hispano, 1993
BIBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL.Rio de Janeiro: CPAD,2005.
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. São Paulo: Martins fontes,2013
CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiática. Rio de Janeiro: CPAD,1999.
DAVIDSON,F.(org) O Novo Comentário da Biblia. São Paulo: Vida Nova,1995,1615
MARGUERAT, Daniel. Introduccíon al Nuevo Testamento. Su historia, su escritura, su teologia. Bilbao: DESCLÉE DE BROUWER, 2008.
OLIVEIRA, Elenice Fátima de. Evangelho de Mateus: uma comunidade resistente. In FRAGMENTOS DE CULTURA , Goiânia, v. 25, n. 3, p. 369-378, jul./set. 2015
SALDARINI, A. J. A Comunidade judaico-cristã de Mateus. São Paulo: Paulin


[1]* N.A.: Em todas as citações bíblicas tomamos por referência a obra BIBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL.Rio de Janeiro: CPAD,2005.

5 comentários:

  1. Boa noite Lucas!
    Primeiramente, gostaria de parabenizá-lo por sua pesquisa. É uma temática sobre minorias, abordada de uma maneira bastante profunda nos escritos antigos. Meu principal questionamento é acerca das suas fontes. Você as utiliza no original? Como a tradução do Evangelho de Mateus ao longo do tempo pode ter influenciado na maneira como os judeus desta época são percebidos?

    Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Flávia, muito obrigado pelo seu comentário e suas questões são muito pertinentes. Respeitando os limites desta publicação optamos por nos limitar aos principais pontos levantados pela historiografia em torno da formação da identidade judaica e cristã no séc. I da Era Comum. Nosso próximo passo no roteiro de nossa pesquisa será justamente a análise de como estas características apologéticas do Evangelho de Mateus foram apropriadas pelos primeiros cristãos. Por conter um discurso que afasta o movimento de Jesus do judaísmo formativo, a tradição mateana tem sido tomada por alguns comentadores como uma obra antijudaica, o que afetou sua tradução, recepção e popularidade nos diferentes contextos históricos e religiosos em que foi invocada.
      Abraços!

      Excluir
    2. Lucas,
      Agradeço a resposta. Boa sorte no desenvolvimento da sua pesquisa!

      Excluir
  2. Olá Lucas. Parabéns pelo texto! As colocações são acertadas a cerca das prerrogativas do Evangelho de Matheus. Há muitas lacunas de estudos, ou ao menos não chegam ao público em geral estudos fundamentados e científicos além dos "achismo" que se veem por aí. Parabéns!

    Luciano dos Santos Ferreira
    Universidade Federal de Sergipe

    ResponderExcluir
  3. Olá Luciano, obrigado pela consideração! Temos percebido que pelo fato desta ser uma obra muito divulgada no meio litúrgico e religioso, o senso comum e o dogmatismo tem muitas vezes limitado o esclarecimento sobre aquilo que tem resultado de trabalho racional e científico.
    Abraços!

    ResponderExcluir